Infância, escrita, leitura e fogo.

Quando criança, inventava muita história. Antes mesmo de saber ler e escrever eu criava todo um mundo partindo das fabulações. Já fui diretora de orfanato, mulher agredida pelo marido, esportista consagrada, passava horas e horas montando o cenário das bonecas e inventando uma história para cada etapa da vida delas, e na hora de “brincar mesmo” parava e ia fazer outra coisa. Jogar futebol nunca era só chutar a bola a caminho do gol. Dentro da minha cabeça e muitas vezes projetando uma fala solitária que virava um murmúrio, me tornava o jogador (na época era mais fácil mudar o gênero para poder viver a história completa) cujo sonho de jogar bola e mudar a vida da família se montava junto da partida com um narrador que sublinhava tudo (muito esporte espetacular, será?). E eu era o melhor, o maior, o mais incrível que já tivemos.

Eu tinha isso, de querer ser sempre grande, ou era diretora de alguma coisa, ou entendia muito de burocracias (pra mim, na época, isso era ser grandona), quando personificava dramas e tragédias eu era sempre meio heroína, a que escapava, tinha voz e buscava abrigo na “vizinha” (papel vivido por alguma tia avó que se prestava a abrir a porta do nosso próprio apartamento que não era próprio para eu entrar).

Hoje entendo que buscava na ficção o que eu não podia viver na vida real. Nas minhas narrativas eu era grandona como boa leonina, e em estado de narrativa eu criava um mundo onde eu podia reinventar o meu mundo doméstico e psíquico, onde eu podia fugir da vida ao redor e correr para dentro de mim mesma, me acolher, vivendo aquilo que eu sentia que podia ser, eu era.

Tive 13, eu disse 13 amigos imaginários que foram morrendo um a um, com finais trágicos elaborados detalhadamente, o último se foi quando eu tinha uns 13 ou 14 anos, não lembro mais a causa da morte, mas lembro até hoje o dia da morte, o sol quente, o último suspiro de uma parte de mim mesma. Naquele dia aprendi muito sobre os fins, sobre o tempo e sobre amadurecer sendo guiada pelos próprios fantasmas.

Recordo também que, depois de aprender a ler e escrever, inventar histórias a partir da linguagem escrita passou a ser meu tempo de maior alegria e encontro possível na vida. Assim como ler um livro era um grande conforto que não negava o confronto. Na escrita e na leitura entendi que poderia ser desmedida, poderia ser o que eu quisesse, viver todas as vidas e todas as mortes, um pouco Deusa, talvez (que por vezes atentava contra si mesma).

Hoje, quando eu lanço uma escrita ao mundo, fico muito feliz quando vejo que alguma pessoa foi tocada por aquela minha provocação em linguagem. Quando a minha escrita abraça alguém, ou se torna meio de elaboração da vida e do mundo praquela pessoa, ou rota de fuga, reinvenção da própria página, das próprias memórias, ou terreno instável que movimenta a pessoa para algum lugar distante ou perto demais dela mesma, isso me inflama o coração. Aqui uso o verbo inflamar no sentido de animar, encher de ardor e de paixão, estímulo, incitação.

Curioso que tantos nutricionistas e médicos de instagram hoje em dia busquem o ideal de um corpo desinflamado, mil receitas para desinflamar os órgãos, as pessoas e as vidas. São muitas as convicções de que o segredo para uma vida boa e longa e equilibrada vem a partir de um corpo que não arde, que não é incitado, que não vive as paixões. Pois ardente é como eu me sinto enquanto leio. Ardente é como me sinto enquanto escrevo e ardente é como eu me sinto enquanto há encontro do que escrevo com quem me lê. No encontro da leitura e da escrita podemos ser corpos inflamados e reinflamados pela ficção.

Isso talvez não seja algo para ser dito por uma escritora séria, me ocorreu agora. Essa coisa de se arder com o encontro da escrita nas paixões e de se inflamar quando a escrita toca alguém nesse sentido de reinventar, arder ainda mais, essa coisa de admitir que elaborou e reelaborou a vida a partir da ficção. Escritoras sérias talvez devessem citar outros autores sérios, referências importantes, teorias elaboradas e nunca admitir uma aproximação da escrita com a vida, com a vida íntima, sobretudo.

Mas vejam, eu não quero ser uma escritora séria, me ocorreu isso agora também.

Aliás, eu não quero ser escritora nenhuma. Nem leitora nenhuma. Quero ler. Quero escrever. Enquanto escrevo e leio eu quero arder, quero o movimento puro da chama, que tudo queima, inclusive todas as escritoras e leitoras que eu venha a querer ser. Porque escrever é movimento, é labareda, é desejar não se fixar nem no tempo, nem no espaço. Escrever é permitir que a chama se alastre e destrua todas as nossas certezas. Ler é escrever e escrever é ler. Assim, ambos os gestos se destinam ao fogo.

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