O perigo do encontro – corpo, teatro, literatura e vida.

O teatro é uma arte cuja força se concentra na tecnologia ancestral do encontro. Tecnologia importante, inclusive, para evolução da espécie humana, uma vez que sozinhos não chegamos longe. O teatro promove o encontro presencial entre seres humanos, e nesse encontro habita sempre um risco. O teatro é esse abismo aberto, onde tudo pode acontecer, porque quando dois seres humanos se encontram, tudo pode realmente acontecer. Dos mais belos aos mais terríveis acontecimentos. Todo encontro é um risco. Uma ferida aberta, que expõe, que atravessa e transforma. Mesmo que cicatrize, as marcas ficam. Algumas por toda uma vida. Outras pelo tempo que precisarmos para lembrar.

Gosto de trazer esse aspecto do risco do encontro para a literatura. Abrir um livro também pode ser muito arriscado. Um livro também pode promover encontros. Ainda que não presenciais, mas imaginativos, sinestésicos, intelectuais. Um livro pode nos fazer imaginar mundos e formas de vida que não imaginaríamos sem ele. Um livro vem carregado de quem o escreveu e de todas as mãos que nele pousaram em leitura ou trabalho. Um livro pode abrir um abismo dentro da pessoa leitora, a transformando de maneira irreparável, sobretudo quando também abriu abismos na pessoa que o escreveu. Porque o encontro parece ser mesmo essa troca entre abismos.

Então proponho tentar fazer de cada projeto literário um encontro arriscado, a começar pela relação com a linguagem. A linguagem, esse puro movimento, que não nos cabe querer controlar ou interromper, e sim seguir o fluxo, dançar junto, contorcer o corpo com o corpo da linguagem e fazer suar as articulações do texto. Alongar as palavras. Fazer correr a língua. Corporificar a escrita de maneira que a pessoa leitora possa sentir em seu próprio corpo o encontro com outros corpos que compõem o texto. Que possa se contorcer junto da palavra e lembrar que é corpo ela também.

Eu mesma já abri livros que me atravessaram e promoveram danças perigosas na vida. Os últimos deles – citando os dos últimos três anos como método de fazer justiça, porque foram uns tantos pela vida – são, O Som e a fúria, do William Faulkner, Tudo sobre o amor, da bell hooks, e Na casa dos sonhos, da Carmem Maria Machado. Estes livros me reviraram imagens, memórias, linguagens, teorias, práticas, imaginações. Me colocaram em risco. Me propuseram movimento por dentro de mim mesma. Estes livros estranharam e entranharam a linguagem, a vida, os conceitos, por dentro de mim. Eles me doeram nas juntas, me contraíram nas vísceras. Depois deles saí irremediavelmente outra, assim como saí outra de muitas peças de teatro que já assisti.

Gosto de imaginar o livro como um palco de teatro. Vivo. Vibrante. Possível. Corpóreo. Pronto ao encontro. E nele o risco se faz. Imaginamos. Criamos. Como diz bell hooks, “aquilo que não podemos imaginar, não pode vir a ser”. O risco do encontro através da imaginação, que também é corpo, pode ser uma brecha poderosa para criarmos outro mundo possível. Outros mundos possíveis. Assim como a imaginação, o encontro também é político e pode promover suas transformações.

Termino esse texto me sentindo ingênua por ainda acreditar, apesar de. Então lembro do impulso para a sua escrita, um agradecimento pós peça que a Fernanda Montenegro fez à plateia. Se Fernanda Montenegro, no alto de seus 94 anos, acredita na força do teatro, justamente por ele promover o encontro, e atesta em alto e bom som que precisamos uns dos outros e o teatro nos lembra disso, quem sou eu para me sentir ingênua ou qualquer coisa do tipo. Assino embaixo com a Fernanda, e ainda brinco de puxar a literatura pela mão e criar outros tantos espaços de encontro pela vida.

Viver é perigoso

Agora mesmo, pouco antes de escrever este texto, quase enfiei a escova de dentes no meu olho direito. Estava escovando os dentes como habitualmente faço pelo menos três vezes ao dia e o gesto me escapole com a escova cheia de pasta já babada parando cerca de um milímetro do meu olho.

Fiquei logo imaginando a cena. Chegando no hospital com a escova presa no olho, ou com o olho todo ensanguentado e a escova numa das mãos, manchada de vermelho, comprovando o causo estranho. Ninguém acreditaria, assim como não acreditam quando conto que uma amiga teve o pé mordido por um lagarto em plena rua e foi parar no hospital.

Provavelmente se tornaria um desses casos de fofoca hospitalar, com tom lendário, o burburinho percorrendo corredores e alas, enquanto isso, na sala ao lado, o médico tentando ver se meu olho teria salvação. Quam sabe não iria parar em alguma série médica viciante.

O caso é que se a escova tivesse de fato entrado no olho eu não estaria aqui escrevendo este texto e muito provavelmente passaria a ter dificuldades para ler, o que provocaria um efeito borboleta em toda a minha existência, mudando drasticamente a minha insignificante vida e tudo por conta de uma escovada de dentes.

Saí do banheiro como quem sai de uma experiência de quase morte. Sentei e comecei a escrever no ato. Porque a vida é muito perigosa para adiar um texto. Viver é realmente perigoso, Guimarães não estava exagerando. Comecei a me perguntar a quantidade de vezes que uma pessoa passa perigo por dia, sendo uma pessoa ainda criança então, nos apeguemos a todos os santos e oremos.

Não cheguei a fazer uma lista, mas fui pensando em tudo o que já vivi e as situações mais corriqueiras me saltaram à memória, é no miudinho que o perigo muitas vezes se apresenta. Lembrei de quando taquei fogo no meu joelho enquanto usava o bastão de cola quente para um trabalho de escola, e depois da ideia ridícula que eu tive de abafar o fogo com as mãos. Se bem que nem sei se nesse tipo de urgência as ideias se apresentam. É só o tal instinto de sobrevivência mesmo. O resultado foi um joelho e duas mãos queimadas e um ódio mortal do bastão de cola quente. Lembrei também de quando pequena, passeando num parque em Porto Alegre, uma bicicleta me atropela e por poucos centímetros não caio na piscina desativada, transformada em pista de skate.

Definitivamente não era para eu estar escrevendo este texto.

Teve a vez que desconfiamos de um cheirinho de gás na cozinha do apê que dividíamos entre três amigas no bairro das Laranjeiras. Mas ah, devia ser coisa de nossos narizes imaginativos. O Rio de Janeiro todo um pouco meio cheira a gás mesmo. Tubulações antigas. Passados uns seis meses a companhia de gás lacrou nossa tubulação e disse que no grau do escapamento, bastaria ligar um interruptor e bum. Pensar que acendíamos e apagávamos a luz o tempo todo.

Em setembro de 2023 estava eu voltando pro Rio depois de um longo período em Floripa, a trabalho, carregada de tralhas naqueles carrinhos chiques do aeroporto de lá. Fui toda faceira usar a escada rolante, pois acho o máximo o carrinho ter esse sistema de travar e destravar e subir a escada inclinado todas as nossas tralhas sem deixá-las cair. Mais máximo ainda acho eu ter me arriscado e conseguido fazer a traquitana funcionar logo na primeira vez que tentei. Só que neste fatídico setembro eu carregava peso de mais – literal e simbolicamente – e na hora de sair da escada não consegui destravar o carrinho de jeito maneira e ele foi me jogando para trás, me obrigando a travar uma batalha com a escada rolante que seguia seu fluxo. Lembro que eu repetia baixinho, como quem suplica a si mesma, socorro, ai o que eu faço, fudeu, fudeu.

Para a graça da existência deste texto, o carrinho se liberou milagrosamente e eu consegui chegar no chão firme do andar superior para embarcar, tendo a oportunidade de meses mais tarde quase enfiar a escova de dentes num dos meus olhos.

Já vi carro invadir a calçada após segundos da minha passagem por ela, já assisti todo o filme da minha vida me bobeando numa escada ao escalar os degraus de três em três, um abacate já caiu na cara de uma amiga minha, meu irmão já ficou roxo com um pirulito que soltou do palito, já passei de bicicleta por cima de uma cobra.

A lista não pararia por aqui se fosse de fato uma lista. Entre os perigos cotidianos que me ocorreram ou os que tomei conhecimento de terem ocorrido com pessoas próximas, poderia passar a vida toda enumerando. Porque são muitos os perigos desta vida. Sobretudo tais perigos cotidianos. A morte que ronda uma escada, uma bala, uma simples caminhada no parque. A foice sempre ali apontada para nossas gargantas. Enquanto isso a gente se preocupa se o avião está com todas as peças, se nossas veias estão desentupidas, se os caroços em nossos corpos são benignos ou não, se estamos produzindo o suficiente para ganhar o suficiente para impedir o tempo o suficiente e nos afastarmos da morte.

A morte pode vir de qualquer canto. A qualquer hora. Ela tem a mesma face da vida, talvez o que as separe seja o medo que sentimos. Aceitar que viver é perigoso pode ser uma saída para abraçar cada dia, cada segundo, cada miudinho de tempo e viver com toda a inteireza que nos for possível. Nunca sabemos quando a bala vai entalar, quando o pé vai falsear, quando a pomba vai dar um rasante em nossa cabeça e provocar uma reação em cadeia que nos levará ao derradeiro fim.

A morte nem sempre abre sua cauda em chegada espalhafatosa. Muitas vezes surge em um segundo aparentemente inofensivo do existir, lembrando que faz parte dele o tempo todo. Já diria o ditado, pra morrer basta estar vivo, e isso ao invés de nos dar medo pode nos dar a gana necessária de entender que viver se cresce também nos detalhes.

Com relação à escova de dentes, vou continuar escovando os dentes ao menos três vezes por dia como costumo fazer, a escova vai continuar me escapando, e continuaremos todos torcendo para que a sorte me acompanhe, porque é nas pequenas horas de descuido que nos damos conta da quantidade de sorte que se apresenta para navegarmos nesse mar de perigos miúdos que é a vida.

Quanto a este texto, deixo para você decidir se foi sorte ou azar a escova de dentes ter me escapado em vão.

Às escuras

Estou buscando exercitar em textos como este um movimento muito parecido com um exercício que fazíamos na faculdade de teatro. Com os olhos vendados íamos caminhando pelo campus, com o suporte de uma colega ou um colega que nos acompanhava, interferindo somente quando necessário. Estávamos entregues aos estímulos e interações do externo, abertos a tudo ou nem tanto, vivendo o percurso sem saber o que viria pela frente. 

Não que esse tipo de caminho no escuro não seja um pouco o processo de toda e qualquer escrita, de ficção, sobretudo, mas alguma coisa temos quando vamos iniciar um processo de escrita. Comigo pelo menos ocorre assim. Uma imagem, uma personagem, uma palavra que seja, um cenário, um enredo simples, uma atmosfera, por vezes a história completa – mais difícil que me ocorra assim, mas há quem só inicie a escrita de tal maneira. Algum indício, alguma fagulha, algum rastro a se perseguir geralmente se tem, mesmo que tudo mude depois e sejam outros os caminhos da escrita.  

Em textos como este tenho tentado experimentar algo mais radical. Um salto no vazio, em um abismo tão imenso que não é possível intuir sequer uma poça ao fundo, árvores ou qualquer tipo de terreno no aguardo da queda. Claro que, depois de escrita uma primeira versão eu reescrevo muitas vezes, como manda o mercúrio em virgem e o apreço pela palavra, mas o primeiro impulso, que leva ao salto e faz emergir o texto em queda livre, este eu tenho feito de maneira espontânea, sem aviso prévio, sem planejamento, sem qualquer indício de que um texto possa estar nascendo. 

Pensando agora, talvez seja uma oportunidade que abro a mim mesma, de às escuras andarilhar pelas trilhas das minhas ideias, sem medo de quem possa aparecer e me oferecer um pão de queijo, ou um abraço inesperado, sem medo das topadas em árvores ou nas quinas de concreto, sem medo das vozes intrusas que me fazem profecias. Assim acontecia em nossos percursos na faculdade. Pessoas ofereciam comida, já levando o pão de queijo, o bolo ou o café à nossa boca, outras vinham com abraços apertados, palavras ao pé do ouvido, o perfume ficando grudado em nossos ombros, sem que soubéssemos quem, quando ou como. Não posso esquecer das pegadinhas, sempre tinham os engraçadinhos. Interagir ou não era escolha nossa, mas o jogo era se abrir e confiar no caminho. 

Sem previsibilidade, sem nenhum tipo de mapa, sem nem sequer aquele colega dando suporte no entorno, sigo em textos como este exercitando minha confiança no caminho, no processo da escrita, no que pode a palavra me oferecer. É claro que por vezes chego bem próxima de algum poste que surge no meio da calçada, ou esbarro em alguém com um perfume me trazendo um pouco de náusea. É claro que vez em quando me divirto com algumas vozes se presentificando do nada e levando o texto para um lugar que não poderia jamais prever. Claro que há oferendas com gosto amargo, e o silêncio às vezes reina, restando apenas eu e a página. Nos encaramos, sendo que estou de olhos fechados tentando permitir que o abismo me convide ao pulo, em uma quase oração. 

Estes saltos produzem certa adrenalina e resgatam um prazer de escrever que é muito diferente dos que sinto quando escrevo meus contos ou quando escrevi meu primeiro romance e agora no processo de escrita do segundo. Estes saltos são mesmo sem paraquedas, sem juízos, sem muitas margens nas quais eu possa ou queira me reter. Agora mesmo enquanto escrevo este parágrafo, sinto uma onda percorrendo os órgãos internos, uma onda que borbulha e revira, desordena e arrepia. 

Volto aos labirintos do campus universitário, aos sentimentos que só uma pessoa que estuda teatro pode provar ao experienciar esse tipo de exercício em plena jornada de formação acadêmica. Muitos estudantes de outros cursos olham e riem, quem são esses malucos que aceitam tais vendas e confiam tanto no jogo a ponto de caminharem sem enxergar o percurso e sem saber o destino?  

Diante do computador me sinto a mesma jovem de vinte e poucos anos, às escuras neste texto que eu jamais pensei em escrever, me deixando levar pelas aberturas, pelas possibilidades do caminho, um passo atrás do outro, uma palavra atrás da outra, às vezes em tropeço. Buscando outros tipos de encontro com a linguagem, sem ter a menor ideia de quando, como, onde ou de se encontraremos o ponto final. 

Parecido com mais alguma coisa além de literatura isso tudo, não? 

Infância, escrita, leitura e fogo.

Quando criança, inventava muita história. Antes mesmo de saber ler e escrever eu criava todo um mundo partindo das fabulações. Já fui diretora de orfanato, mulher agredida pelo marido, esportista consagrada, passava horas e horas montando o cenário das bonecas e inventando uma história para cada etapa da vida delas, e na hora de “brincar mesmo” parava e ia fazer outra coisa. Jogar futebol nunca era só chutar a bola a caminho do gol. Dentro da minha cabeça e muitas vezes projetando uma fala solitária que virava um murmúrio, me tornava o jogador (na época era mais fácil mudar o gênero para poder viver a história completa) cujo sonho de jogar bola e mudar a vida da família se montava junto da partida com um narrador que sublinhava tudo (muito esporte espetacular, será?). E eu era o melhor, o maior, o mais incrível que já tivemos.

Eu tinha isso, de querer ser sempre grande, ou era diretora de alguma coisa, ou entendia muito de burocracias (pra mim, na época, isso era ser grandona), quando personificava dramas e tragédias eu era sempre meio heroína, a que escapava, tinha voz e buscava abrigo na “vizinha” (papel vivido por alguma tia avó que se prestava a abrir a porta do nosso próprio apartamento que não era próprio para eu entrar).

Hoje entendo que buscava na ficção o que eu não podia viver na vida real. Nas minhas narrativas eu era grandona como boa leonina, e em estado de narrativa eu criava um mundo onde eu podia reinventar o meu mundo doméstico e psíquico, onde eu podia fugir da vida ao redor e correr para dentro de mim mesma, me acolher, vivendo aquilo que eu sentia que podia ser, eu era.

Tive 13, eu disse 13 amigos imaginários que foram morrendo um a um, com finais trágicos elaborados detalhadamente, o último se foi quando eu tinha uns 13 ou 14 anos, não lembro mais a causa da morte, mas lembro até hoje o dia da morte, o sol quente, o último suspiro de uma parte de mim mesma. Naquele dia aprendi muito sobre os fins, sobre o tempo e sobre amadurecer sendo guiada pelos próprios fantasmas.

Recordo também que, depois de aprender a ler e escrever, inventar histórias a partir da linguagem escrita passou a ser meu tempo de maior alegria e encontro possível na vida. Assim como ler um livro era um grande conforto que não negava o confronto. Na escrita e na leitura entendi que poderia ser desmedida, poderia ser o que eu quisesse, viver todas as vidas e todas as mortes, um pouco Deusa, talvez (que por vezes atentava contra si mesma).

Hoje, quando eu lanço uma escrita ao mundo, fico muito feliz quando vejo que alguma pessoa foi tocada por aquela minha provocação em linguagem. Quando a minha escrita abraça alguém, ou se torna meio de elaboração da vida e do mundo praquela pessoa, ou rota de fuga, reinvenção da própria página, das próprias memórias, ou terreno instável que movimenta a pessoa para algum lugar distante ou perto demais dela mesma, isso me inflama o coração. Aqui uso o verbo inflamar no sentido de animar, encher de ardor e de paixão, estímulo, incitação.

Curioso que tantos nutricionistas e médicos de instagram hoje em dia busquem o ideal de um corpo desinflamado, mil receitas para desinflamar os órgãos, as pessoas e as vidas. São muitas as convicções de que o segredo para uma vida boa e longa e equilibrada vem a partir de um corpo que não arde, que não é incitado, que não vive as paixões. Pois ardente é como eu me sinto enquanto leio. Ardente é como me sinto enquanto escrevo e ardente é como eu me sinto enquanto há encontro do que escrevo com quem me lê. No encontro da leitura e da escrita podemos ser corpos inflamados e reinflamados pela ficção.

Isso talvez não seja algo para ser dito por uma escritora séria, me ocorreu agora. Essa coisa de se arder com o encontro da escrita nas paixões e de se inflamar quando a escrita toca alguém nesse sentido de reinventar, arder ainda mais, essa coisa de admitir que elaborou e reelaborou a vida a partir da ficção. Escritoras sérias talvez devessem citar outros autores sérios, referências importantes, teorias elaboradas e nunca admitir uma aproximação da escrita com a vida, com a vida íntima, sobretudo.

Mas vejam, eu não quero ser uma escritora séria, me ocorreu isso agora também.

Aliás, eu não quero ser escritora nenhuma. Nem leitora nenhuma. Quero ler. Quero escrever. Enquanto escrevo e leio eu quero arder, quero o movimento puro da chama, que tudo queima, inclusive todas as escritoras e leitoras que eu venha a querer ser. Porque escrever é movimento, é labareda, é desejar não se fixar nem no tempo, nem no espaço. Escrever é permitir que a chama se alastre e destrua todas as nossas certezas. Ler é escrever e escrever é ler. Assim, ambos os gestos se destinam ao fogo.

Romance de estreia

Meu primeiro romance vem aí, no segundo semestre de 2024, pela editora Claraboia.

Escrever um romance nunca esteve na lista de tarefas, ou mesmo desejos. Se um dia acontecesse, ok, e sempre soube que só aconteceria se fosse a narrativa pedindo. Nunca fui dessas que pensava que uma contista deveria necessariamente escrever um romance em algum momento da trajetória.

Eis que em fevereiro de 2020 eu terminei uma dramaturgia chamada Carne de Segunda. Então veio a tal da pandemia. E foi uma conjuntura formada destes dois fatores, entre outros, que me fez escrever meu primeiro romance.

Primeiro a personagem da dramaturgia não saía da minha cabeça. Era uma voz me sussurrando umas súplicas.

Segundo eu não tinha mais trabalho (o teatro parou como muitas outras cenas), estava preocupada e abalada como quase todo mundo e precisando de novas ações pra me distrair.

Terceiro o escritor Robertson Frizero começou a dar uma oficina de escrita do romance no Instagram dele, de forma gratuita, pra ajudar a passar por aquela situação catastrófica que vivíamos (ainda mais nós, no Brasil).

Quarto que pra fazer alguns exercícios da oficina seria legal ter alguma ideia para concretizar melhor o aprendizado. E eu pensei: por que não?! E comecei a brincar de adaptar a dramaturgia para um romance. Nenhuma pretensão de finalizar, nenhuma pretensão de que viraria um livro publicado, nenhuma pretensão de nada. Eu só queria preencher meu tempo com algo que não fossem mortes, descasos e medo.

Mas o movimento foi tomando outro rumo, já não era mais uma adaptação da dramaturgia que eu estava escrevendo, já não era mais nem a mesmíssima personagem, tudo novo e intenso.

E aqui deixo um grande parênteses e finalizo por agora dizendo que “Açougueira” vem aí em 2024 pela Claraboia, uma editora de escritoras mulheres, tudo a ver com o próprio livro.

Pois virou mesmo um livro, hein?! Mas sobre isso depois eu conto mais.

Dramaturgismo

Finalzinho do mês de junho foi momento de estrear o novo espetáculo da Traço Cia. de Teatro de Florianópolis. O espetáculo Quando dançamos acima das fogueiras estreou no dia 30 de junho no SESC Prainha.

Neste novo espetáculo tive o prazer de criar junto destes artistas e amigos que tanto admiro. Assumi o movimento de dramaturgismo, e em processos tão coletivos como este que vivenciamos é até difícil explicar a função. Mas gosto de pensar no movimento mesmo de uma dramaturgia que está aberta ao processo, à cena, ao encontro e a todas as transformações que podem surgir. Um movimento de provocação, orientação, estímulo, cuidado, bordado, pequenas explosões de palavras e acomodação de um caminho, uma rota, para que o jogo possa verter sem perigo de não saber para onde retornar. O principal desafio foi o de trazer a pesquisa importante para a Cia. com relação à ação de protagonismo do público em seus espetáculos. O dramaturgismo não podia dizer respeito somente às figuras palhaças, nem aos elementos da cena, porque tudo e todos fariam parte da experiência.

Foi um processo intenso e conectado, onde pude aprofundar minha pesquisa em relação à palavra que é corpo, e exercitar alguns dispositivos provocadores de elementos dramatúrgicos despertados a partir do corpo coletivo, da experimentação da cena e da própria pesquisa e inquietação dos atores e atrizes.

Eles seguem em apresentação em Floripa pelo mês de Julho. Vale conferir. Ingressos gratuitos.

Este foi um projeto realizado através do Prêmio Funarte.

A Traço Cia. de Teatro é uma companhia teatral profissional de Florianópolis (criada no ano de 2001). Sua principal linha investigativa é a Palhaçaria, experimentada em diferentes territórios de atuação: teatros, praças, ruas, hospitais, comunidades, empresas, escolas, campos de refugiados, áreas de conflito e outros. Assim, a Cia. desenvolveu uma linguagem artística própria, sustentada no encontro entre artistas e público, edificando uma relação horizontal, afetiva e transformadora.

Circulou por 18 estados brasileiros e diferentes países, como Portugal, Espanha, Itália, Cisjordânia, Colômbia e Costa Rica. Recebeu 07 premiações artísticas em diferentes festivais e, atualmente, possui um repertório formado por espetáculos teatrais, contações de histórias, intervenções artísticas e projetos humanitários como o (A)Gentes do Riso e as ações que realiza junto à organização internacional Pallasos en Rebeldía.

A Traço Cia. de Teatro também ministra oficinas de formação na linguagem da Palhaçaria, gere e coordena projetos junto às leis e editais de incentivo à Cultura nas esferas municipal, estadual e federal.

Palestra-oficina de escrita criativa

Que baita experiência foi concretizar a palestra-oficina de escrita criativa “Escrever a vida”.

Uma ideia que criei para a contrapartida social do projeto em que levamos, com o Coletivo Mar Cultural, 27 apresentações de teatro gratuitas para escolas públicas e mais 02 ações formativas também gratuitas. Com a palestra-oficina estive nos EJAS Sul e Centro, em Floripa, movimentando as palavras.

A palestra-oficina “Escrever a vida” consistiu em uma exposição de fala com duração de 60 minutos, dentro dos quais também foram realizadas breves dinâmicas interativas e simples exercícios de escrita criativa que possibilitaram o aprofundamento das ideias conversadas. O fio condutor da atividade foi o de aproximar a escrita literária e criativa da vida cotidiana, de modo que os participantes pudessem reconhecer o quanto já escrevem no dia a dia, e o quanto a escrita não é algo distante de suas realidades.

Foram realizadas interações e dinâmicas com objetivo de desmistificar o ato de escrever, refletindo sobre alguns tabus relacionados à atividade, aproximando a escrita da vida cotidiana e preenchendo-a de sentido estético e criativo, de humor e de referências da própria vida.

Cada participante saiu da experiência com uma breve narrativa que teve seu ponto de partida em uma lista de supermercado criada pelos próprios participantes. Foram realizadas leituras dos materiais produzidos e trocas sobre escrita.

Abriu-se o espaço para que cada pessoa pudesse, a seu tempo, lançar um olhar mais literário e criativo sobre a vida e o mundo, aproximando o exercício de uma escrita mais estética e criativa de suas próprias práticas de escrita cotidiana.

O mais lindo é sentir as pessoas se apropriando das palavras e da possibilidade poderosa e única de se expressar através da escrita.

Todas e todos temos o direito a um acesso estético e criativo da palavra e do mundo.

Acredito muito nesta ação e quero mais!

💙


O ovo, a galinha e a máquina de escrever

Nos meses de maio e junho, junto ao Coletivo Mar Cultural, estive rodando escolas públicas com a peça O ovo, a galinha e a máquina de escrever, uma dramaturgia minha, livremente inspirada no universo da autora Clarice Lispector. Uma homenagem e um convite para que crianças e professoras se permitam conhecer a obra grandiosa desta autora tão importante.

Foram 27 apresentações gratuitas e difícil descrever o tamanho das transformações vinda desse movimento. Estar em cena novamente. Presente na escola. Recebendo o carinho e alegria das crianças. Percebendo que a escola precisa de mais teatro, mais literatura e da presença de nossos artistas e de nossas memórias.

O projeto foi possível através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, Ministério da Cultura, Governo Federal. Patrocínio de SCGÁS e SCHERER Autopeças.

Vou deixar um vídeo e umas fotos para dar um gostinho.

Oficina de escrita criativa

Oi, pessoal. Dia 21 facilitarei a oficina “Da lista à narrativa” junto da editora Patuá e livraria Patuscada. O encontro será online e o precinho é 50,00 dinheiros. Bora? Vai ser uma alegria ter vocês por lá. Vamos nos divertir escrevendo, é possível. Bora?!

Link de inscrição

Listas podem gerar literatura?

Neste encontro iremos investigar, na prática, possibilidades literárias a partir de listas. As listas são geralmente muito utilizadas como ferramentas para processos criativos, mas será que podem se expandir para composição de linguagem? Na oficina, além de experimentos de escrita que poderão compor breves narrativas, figuras, paisagens sonoras, imagens e atmosferas, teremos contato com exemplos de narrativas que se utilizam de listas, provocando-nos a pensar sobre suas potências para além de ferramentas de processo. A proposta deste encontro é abrir possibilidades criativas para o gesto da escrita a partir de um dispositivo cotidiano como a lista.