O teatro é uma arte cuja força se concentra na tecnologia ancestral do encontro. Tecnologia importante, inclusive, para evolução da espécie humana, uma vez que sozinhos não chegamos longe. O teatro promove o encontro presencial entre seres humanos, e nesse encontro habita sempre um risco. O teatro é esse abismo aberto, onde tudo pode acontecer, porque quando dois seres humanos se encontram, tudo pode realmente acontecer. Dos mais belos aos mais terríveis acontecimentos. Todo encontro é um risco. Uma ferida aberta, que expõe, que atravessa e transforma. Mesmo que cicatrize, as marcas ficam. Algumas por toda uma vida. Outras pelo tempo que precisarmos para lembrar.
Gosto de trazer esse aspecto do risco do encontro para a literatura. Abrir um livro também pode ser muito arriscado. Um livro também pode promover encontros. Ainda que não presenciais, mas imaginativos, sinestésicos, intelectuais. Um livro pode nos fazer imaginar mundos e formas de vida que não imaginaríamos sem ele. Um livro vem carregado de quem o escreveu e de todas as mãos que nele pousaram em leitura ou trabalho. Um livro pode abrir um abismo dentro da pessoa leitora, a transformando de maneira irreparável, sobretudo quando também abriu abismos na pessoa que o escreveu. Porque o encontro parece ser mesmo essa troca entre abismos.
Então proponho tentar fazer de cada projeto literário um encontro arriscado, a começar pela relação com a linguagem. A linguagem, esse puro movimento, que não nos cabe querer controlar ou interromper, e sim seguir o fluxo, dançar junto, contorcer o corpo com o corpo da linguagem e fazer suar as articulações do texto. Alongar as palavras. Fazer correr a língua. Corporificar a escrita de maneira que a pessoa leitora possa sentir em seu próprio corpo o encontro com outros corpos que compõem o texto. Que possa se contorcer junto da palavra e lembrar que é corpo ela também.
Eu mesma já abri livros que me atravessaram e promoveram danças perigosas na vida. Os últimos deles – citando os dos últimos três anos como método de fazer justiça, porque foram uns tantos pela vida – são, O Som e a fúria, do William Faulkner, Tudo sobre o amor, da bell hooks, e Na casa dos sonhos, da Carmem Maria Machado. Estes livros me reviraram imagens, memórias, linguagens, teorias, práticas, imaginações. Me colocaram em risco. Me propuseram movimento por dentro de mim mesma. Estes livros estranharam e entranharam a linguagem, a vida, os conceitos, por dentro de mim. Eles me doeram nas juntas, me contraíram nas vísceras. Depois deles saí irremediavelmente outra, assim como saí outra de muitas peças de teatro que já assisti.
Gosto de imaginar o livro como um palco de teatro. Vivo. Vibrante. Possível. Corpóreo. Pronto ao encontro. E nele o risco se faz. Imaginamos. Criamos. Como diz bell hooks, “aquilo que não podemos imaginar, não pode vir a ser”. O risco do encontro através da imaginação, que também é corpo, pode ser uma brecha poderosa para criarmos outro mundo possível. Outros mundos possíveis. Assim como a imaginação, o encontro também é político e pode promover suas transformações.
Termino esse texto me sentindo ingênua por ainda acreditar, apesar de. Então lembro do impulso para a sua escrita, um agradecimento pós peça que a Fernanda Montenegro fez à plateia. Se Fernanda Montenegro, no alto de seus 94 anos, acredita na força do teatro, justamente por ele promover o encontro, e atesta em alto e bom som que precisamos uns dos outros e o teatro nos lembra disso, quem sou eu para me sentir ingênua ou qualquer coisa do tipo. Assino embaixo com a Fernanda, e ainda brinco de puxar a literatura pela mão e criar outros tantos espaços de encontro pela vida.