Às escuras

Estou buscando exercitar em textos como este um movimento muito parecido com um exercício que fazíamos na faculdade de teatro. Com os olhos vendados íamos caminhando pelo campus, com o suporte de uma colega ou um colega que nos acompanhava, interferindo somente quando necessário. Estávamos entregues aos estímulos e interações do externo, abertos a tudo ou nem tanto, vivendo o percurso sem saber o que viria pela frente. 

Não que esse tipo de caminho no escuro não seja um pouco o processo de toda e qualquer escrita, de ficção, sobretudo, mas alguma coisa temos quando vamos iniciar um processo de escrita. Comigo pelo menos ocorre assim. Uma imagem, uma personagem, uma palavra que seja, um cenário, um enredo simples, uma atmosfera, por vezes a história completa – mais difícil que me ocorra assim, mas há quem só inicie a escrita de tal maneira. Algum indício, alguma fagulha, algum rastro a se perseguir geralmente se tem, mesmo que tudo mude depois e sejam outros os caminhos da escrita.  

Em textos como este tenho tentado experimentar algo mais radical. Um salto no vazio, em um abismo tão imenso que não é possível intuir sequer uma poça ao fundo, árvores ou qualquer tipo de terreno no aguardo da queda. Claro que, depois de escrita uma primeira versão eu reescrevo muitas vezes, como manda o mercúrio em virgem e o apreço pela palavra, mas o primeiro impulso, que leva ao salto e faz emergir o texto em queda livre, este eu tenho feito de maneira espontânea, sem aviso prévio, sem planejamento, sem qualquer indício de que um texto possa estar nascendo. 

Pensando agora, talvez seja uma oportunidade que abro a mim mesma, de às escuras andarilhar pelas trilhas das minhas ideias, sem medo de quem possa aparecer e me oferecer um pão de queijo, ou um abraço inesperado, sem medo das topadas em árvores ou nas quinas de concreto, sem medo das vozes intrusas que me fazem profecias. Assim acontecia em nossos percursos na faculdade. Pessoas ofereciam comida, já levando o pão de queijo, o bolo ou o café à nossa boca, outras vinham com abraços apertados, palavras ao pé do ouvido, o perfume ficando grudado em nossos ombros, sem que soubéssemos quem, quando ou como. Não posso esquecer das pegadinhas, sempre tinham os engraçadinhos. Interagir ou não era escolha nossa, mas o jogo era se abrir e confiar no caminho. 

Sem previsibilidade, sem nenhum tipo de mapa, sem nem sequer aquele colega dando suporte no entorno, sigo em textos como este exercitando minha confiança no caminho, no processo da escrita, no que pode a palavra me oferecer. É claro que por vezes chego bem próxima de algum poste que surge no meio da calçada, ou esbarro em alguém com um perfume me trazendo um pouco de náusea. É claro que vez em quando me divirto com algumas vozes se presentificando do nada e levando o texto para um lugar que não poderia jamais prever. Claro que há oferendas com gosto amargo, e o silêncio às vezes reina, restando apenas eu e a página. Nos encaramos, sendo que estou de olhos fechados tentando permitir que o abismo me convide ao pulo, em uma quase oração. 

Estes saltos produzem certa adrenalina e resgatam um prazer de escrever que é muito diferente dos que sinto quando escrevo meus contos ou quando escrevi meu primeiro romance e agora no processo de escrita do segundo. Estes saltos são mesmo sem paraquedas, sem juízos, sem muitas margens nas quais eu possa ou queira me reter. Agora mesmo enquanto escrevo este parágrafo, sinto uma onda percorrendo os órgãos internos, uma onda que borbulha e revira, desordena e arrepia. 

Volto aos labirintos do campus universitário, aos sentimentos que só uma pessoa que estuda teatro pode provar ao experienciar esse tipo de exercício em plena jornada de formação acadêmica. Muitos estudantes de outros cursos olham e riem, quem são esses malucos que aceitam tais vendas e confiam tanto no jogo a ponto de caminharem sem enxergar o percurso e sem saber o destino?  

Diante do computador me sinto a mesma jovem de vinte e poucos anos, às escuras neste texto que eu jamais pensei em escrever, me deixando levar pelas aberturas, pelas possibilidades do caminho, um passo atrás do outro, uma palavra atrás da outra, às vezes em tropeço. Buscando outros tipos de encontro com a linguagem, sem ter a menor ideia de quando, como, onde ou de se encontraremos o ponto final. 

Parecido com mais alguma coisa além de literatura isso tudo, não? 

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