Viver é perigoso

Agora mesmo, pouco antes de escrever este texto, quase enfiei a escova de dentes no meu olho direito. Estava escovando os dentes como habitualmente faço pelo menos três vezes ao dia e o gesto me escapole com a escova cheia de pasta já babada parando cerca de um milímetro do meu olho.

Fiquei logo imaginando a cena. Chegando no hospital com a escova presa no olho, ou com o olho todo ensanguentado e a escova numa das mãos, manchada de vermelho, comprovando o causo estranho. Ninguém acreditaria, assim como não acreditam quando conto que uma amiga teve o pé mordido por um lagarto em plena rua e foi parar no hospital.

Provavelmente se tornaria um desses casos de fofoca hospitalar, com tom lendário, o burburinho percorrendo corredores e alas, enquanto isso, na sala ao lado, o médico tentando ver se meu olho teria salvação. Quam sabe não iria parar em alguma série médica viciante.

O caso é que se a escova tivesse de fato entrado no olho eu não estaria aqui escrevendo este texto e muito provavelmente passaria a ter dificuldades para ler, o que provocaria um efeito borboleta em toda a minha existência, mudando drasticamente a minha insignificante vida e tudo por conta de uma escovada de dentes.

Saí do banheiro como quem sai de uma experiência de quase morte. Sentei e comecei a escrever no ato. Porque a vida é muito perigosa para adiar um texto. Viver é realmente perigoso, Guimarães não estava exagerando. Comecei a me perguntar a quantidade de vezes que uma pessoa passa perigo por dia, sendo uma pessoa ainda criança então, nos apeguemos a todos os santos e oremos.

Não cheguei a fazer uma lista, mas fui pensando em tudo o que já vivi e as situações mais corriqueiras me saltaram à memória, é no miudinho que o perigo muitas vezes se apresenta. Lembrei de quando taquei fogo no meu joelho enquanto usava o bastão de cola quente para um trabalho de escola, e depois da ideia ridícula que eu tive de abafar o fogo com as mãos. Se bem que nem sei se nesse tipo de urgência as ideias se apresentam. É só o tal instinto de sobrevivência mesmo. O resultado foi um joelho e duas mãos queimadas e um ódio mortal do bastão de cola quente. Lembrei também de quando pequena, passeando num parque em Porto Alegre, uma bicicleta me atropela e por poucos centímetros não caio na piscina desativada, transformada em pista de skate.

Definitivamente não era para eu estar escrevendo este texto.

Teve a vez que desconfiamos de um cheirinho de gás na cozinha do apê que dividíamos entre três amigas no bairro das Laranjeiras. Mas ah, devia ser coisa de nossos narizes imaginativos. O Rio de Janeiro todo um pouco meio cheira a gás mesmo. Tubulações antigas. Passados uns seis meses a companhia de gás lacrou nossa tubulação e disse que no grau do escapamento, bastaria ligar um interruptor e bum. Pensar que acendíamos e apagávamos a luz o tempo todo.

Em setembro de 2023 estava eu voltando pro Rio depois de um longo período em Floripa, a trabalho, carregada de tralhas naqueles carrinhos chiques do aeroporto de lá. Fui toda faceira usar a escada rolante, pois acho o máximo o carrinho ter esse sistema de travar e destravar e subir a escada inclinado todas as nossas tralhas sem deixá-las cair. Mais máximo ainda acho eu ter me arriscado e conseguido fazer a traquitana funcionar logo na primeira vez que tentei. Só que neste fatídico setembro eu carregava peso de mais – literal e simbolicamente – e na hora de sair da escada não consegui destravar o carrinho de jeito maneira e ele foi me jogando para trás, me obrigando a travar uma batalha com a escada rolante que seguia seu fluxo. Lembro que eu repetia baixinho, como quem suplica a si mesma, socorro, ai o que eu faço, fudeu, fudeu.

Para a graça da existência deste texto, o carrinho se liberou milagrosamente e eu consegui chegar no chão firme do andar superior para embarcar, tendo a oportunidade de meses mais tarde quase enfiar a escova de dentes num dos meus olhos.

Já vi carro invadir a calçada após segundos da minha passagem por ela, já assisti todo o filme da minha vida me bobeando numa escada ao escalar os degraus de três em três, um abacate já caiu na cara de uma amiga minha, meu irmão já ficou roxo com um pirulito que soltou do palito, já passei de bicicleta por cima de uma cobra.

A lista não pararia por aqui se fosse de fato uma lista. Entre os perigos cotidianos que me ocorreram ou os que tomei conhecimento de terem ocorrido com pessoas próximas, poderia passar a vida toda enumerando. Porque são muitos os perigos desta vida. Sobretudo tais perigos cotidianos. A morte que ronda uma escada, uma bala, uma simples caminhada no parque. A foice sempre ali apontada para nossas gargantas. Enquanto isso a gente se preocupa se o avião está com todas as peças, se nossas veias estão desentupidas, se os caroços em nossos corpos são benignos ou não, se estamos produzindo o suficiente para ganhar o suficiente para impedir o tempo o suficiente e nos afastarmos da morte.

A morte pode vir de qualquer canto. A qualquer hora. Ela tem a mesma face da vida, talvez o que as separe seja o medo que sentimos. Aceitar que viver é perigoso pode ser uma saída para abraçar cada dia, cada segundo, cada miudinho de tempo e viver com toda a inteireza que nos for possível. Nunca sabemos quando a bala vai entalar, quando o pé vai falsear, quando a pomba vai dar um rasante em nossa cabeça e provocar uma reação em cadeia que nos levará ao derradeiro fim.

A morte nem sempre abre sua cauda em chegada espalhafatosa. Muitas vezes surge em um segundo aparentemente inofensivo do existir, lembrando que faz parte dele o tempo todo. Já diria o ditado, pra morrer basta estar vivo, e isso ao invés de nos dar medo pode nos dar a gana necessária de entender que viver se cresce também nos detalhes.

Com relação à escova de dentes, vou continuar escovando os dentes ao menos três vezes por dia como costumo fazer, a escova vai continuar me escapando, e continuaremos todos torcendo para que a sorte me acompanhe, porque é nas pequenas horas de descuido que nos damos conta da quantidade de sorte que se apresenta para navegarmos nesse mar de perigos miúdos que é a vida.

Quanto a este texto, deixo para você decidir se foi sorte ou azar a escova de dentes ter me escapado em vão.

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