biriríbororó (2)

Não sei se o Rio de Janeiro é um lugar que entrega mais personagens ou se eu vejo personagem em tudo. Dia desses saí pra correr na praça, no fim de tarde, calor miserável. Naquelas academias que se dizem da terceira idade, num equipamento desses que simula uma caminhada, uma senhora ia a vinha com passadas curtas de perna. Cabelos compridos e encaracolados, usava óculos, tinha uma expressão de menina doce e um olhar distante. Até aí tudo sem grandes questões. Não fosse o fato de na mão direita ela empunhar uma sombrinha bordô, armada. A senhora balançava as pernocas pra lá e pra cá, debaixo de um sol nada inocente, com a sombrinha em riste e aquela expressão leve, doce e distante. Imagem perturbadora, ao menos pra mim, para tantos apenas uma senhora se protegendo do sol enquanto se exercita.

Fiz questão de olhar uma vez só. Nas outras voltas que dei na pista não retornei meu olhar para ela. Queria ficar com aquela sensação de miragem. Já praticaram isso? Tem coisa que uma segunda olhada estraga. Agora, voltando a lembrar da imagem pra escrever aqui, já sinto como imaginação. Se me transporto para o momento, posso jurar que numa segunda olhadadela ela não estaria lá.

Uma personagem?

Às vezes é cansativo isso de tudo se interconectar feito cena, de toda figura virar personagem. Mas acontece dia sim e outro também. E eu que lute com essa senhorinha doce demais caminhando no equipamento da academia com sua sombrinha armada.

Foto meramente ilustrativa da academia da praça e do aparelho que simula caminhada. A senhora obviamente não consta, porque como disse, escolhi guardar feito miragem.

Essa senhora nem deve saber que veio parar num biriríbororó. Eu mesma não achei que fosse ter um novo biriríbororó, mas fiquei feliz de saber que o anterior animou e aliviou algumas pessoas, pela identificação com meus métodos nada ortodoxos de escrita e com as minhas ranzinzices. É bom saber que a gente não tá sozinha nas biriríbororózices da vida, né?

Essa coisa de falar biriríbororó começou num período de muita exaustão mental e ao mesmo tempo muita história bizarra pra contar pras pessoas amigas. Aí, com preguiça de certos detalhes, eu metia: “Aí, amiga, ela foi lá e biriríbororó…”. Não sei como, mas as pessoas entenderam minhas histórias, ou pelo menos disseram que sim.

E biriríbororó pretende ser esse turbilhão de ideias. Quando eu tiver de reclamar, eu reclamo, quando eu tiver de trocar ideia, eu troco, quando eu tiver de fazer piada, eu faço (sou péssima piadista). Na maioria das vezes as seções vão se misturar e aqui eu farei questão dos detalhes, talvez o biriríbororó que aqui se apresenta seja o oposto do atalho da linguagem que o fez surgir.

Pensando agora, essa explicação deveria constar na primeira edição, mas quem disse que seguimos uma linha do tempo linear, não é mesmo?!

2024, ô aninho ambíguo. Igualzinho a vida é sempre, independente do ano. Igualzinho a literatura, ao menos pra mim, deve ser, embora a literatura não deva nada, muito menos pra mim.

A ponte aqui é pra dizer que não há personagem interessante que seja só boa ou só ruim. Para aí pra pensar. A misturinha de ruindade e bondade e mais um punhado de possibilidades – deboche, ironia, patetice, chatura… – do ser é que dá vida e move a figura na página. Personagem é também espaço, é também ritmo, é também tempo, é corpo, é suor, é voz, é movimento. Uma personagem é também e talvez sobretudo, o vazio. Aquilo que não sabemos dela. As lacunas que se instauram a partir do encontro. Como a senhora de sombrinha no aparelho de ginástica (a ponte também nos traz de volta a ela). O que a torna uma personagem é o que vejo ali no exato momento em que a encontro com o olhar, aquela combinação inusitada de apetrechos, contextos e expressões, mas também tudo aquilo que não vejo e, portanto, passo a inferir. O vazio que habita aquela senhora é o que a transforma com mais força em uma personagem. Personagem essa que agora me assombra.

Tem me incomodado no mundo ultimamente essa necessidade de dizer tudo. O medo do vazio. A gente tem pulado as lacunas. Fingido que elas não existem. Ninguém dá conta de esmiuçar algo ou alguém a partir da palavra. Nada nos é apresentado de forma totalmente preenchida, acessível e límpida. Mesmo que tente parecer. Não há vida, assunto, movimento, pessoa, estrondo que se esgote em explicações e informações. Não saber faz parte disso que somos e talvez seja a distância estabelecida entre nós e o não saber a responsável por nos colocar em tantos apuros. Ouvi dia desses o Roberto Crema dizendo que aquilo que nos torna únicos é a possibilidade de não saber. É aquilo que nos falta que pode nos salvar da normose. Pensando sobre as narrativas literárias, ando sentindo falta da falta nelas também. O vazio é bem-vindo. Não há o que esgotar em um texto ou livro, a não ser a pessoa leitora. Esvaziemos nossas narrativas. Experimentar não mata ninguém.

Nesse sentido, das personagens e das ambiguidades e das lacunas, li alguns bons livros, onde não é possível defender e nem odiar as personagens por completo, não é possível separá-las do espaço, de suas origens, dos outros elementos narrativos de um modo geral, onde não é possível saber tudo sobre elas, tampouco elas o sabem. Personagens que ficam me povoando o corpo, me rondando feito fantasmas, presentes demais. Vou deixar aqui embaixo três títulos que foram muito fortes nesse sentido:

Vento Vazio – Marcela Dantés

Enquanto Agonizo – William Faulkner

O quarto de Giovanni – James Baldwin

Li outros bons livros nesse 2024 e vou compartilhar aqui com vocês. Tem de tudo (conto, romance e poesia), foquei em ficção, li boas não-ficções também, mas aí quem sabe outra hora eu trago pra cá. Por hoje fico com os mundos inventados:

Mau hábito – Alana Portero

Mariconas – Euler Lopes

Os Malaquias – Andréa Del Fuego

Todo mundo tem mãe, Catarina – Carla Guerson

Da costela do impossível – Marcela Alves

Cisne de Vidro – Claudinei Sevegnani

Câmera Escura – Marco Aurélio Corrêa

As despedidas – Carina Bacelar

Todos nós sonhávamos em ser Carmen Miranda – Kaio Phelipe

Li menos do que gostaria em 2024, mas li com mais atenção. Li muita coisa boa, e esbarrei com livros que não me animaram, alguns talvez a questão fosse mais o meu momento, estado de espírito, vai saber. A alguns devo voltar noutra oportunidade. Já tem uns anos que aprendi a abandonar leituras e ficar em paz, para algumas retorno, já outras… Só não é possível fazer isso com as leituras de trabalho. Tem uns livros que ando muito querendo ler, mas por motivo$ múltiplo$ssss$ a hora ainda não chegou. Quem sabe em 2025. Lembrei que tinha uma comunidade no Orkut (o Orkut era muito mais legal que instagram – xófens, pesquisem o que é Orkut, rsrs) que unia pessoas frustradas pela trágica consciência de que jamais teriam tempo de vida o suficiente para ler todos os livros que gostariam. A gente morre e livros seguem sendo escritos e tem coisa mais trágica do que talvez o livro que mais me encantaria na vida ser escrito depois da minha morte? Tristíssimo!!!

Nesse climinha de tragédia literária vou me despedindo. Vou ficando por aqui, nesse suco de bagunça de ideias que virou esse texto. Viva a baguncinha boa. Talvez seja isso um biriríbororó, para além da preguiça de contar a história completa, uma grande bagunça que se faz na lambança de todos os vazios possíveis.

Até 2025, biriríbororóbers (mel dels, marina, menos, bem menos)!

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