biriríbororó (3)

Não sei até que ponto interessa a vocês terem algum tipo de acesso aos meus processos de escrita. Fico pensando que só funcionaria na medida em que eu conseguisse transcender meu próprio umbigo. E não é essa a luta de toda uma vida? Ao menos para aqueles que sentem o umbigo como um calabouço quente, úmido e apertado, que por vezes nos congela e sufoca, começando pelos pés. Eu sinto!

A questão é que estou lendo o livro “A louca da casa”, da Rosa Montero, e a cada página eu grifo algum paradoxo ou tragédia do percurso criativo e traço paralelos com meus processos e tenho vontade de dialogar sobre. E como eu sempre penso que processos criativos servem pra vida, não só dentro de uma sala de ensaio, ou de um caderno de notas, ou de uma tela de pintura…acho que talvez possa funcionar um pouco disso por aqui.

Vamos de copia e cola, ou copia e digita pra ser mais fidedigna:

“Um dia em que eu andava muito desesperada porque o romance que estava escrevendo resistia a mim, Jorge Enrique Adoum, o célebre autor equatoriano, me enviou por e-mail uma eloquente frase que me consolou, fazendo com que eu entendesse melhor a natureza do trabalho narrativo. É dos irmãos Goncourt e diz assim: “A literatura é uma facilidade inata e uma dificuldade adquirida”. E sim, é verdade, é exatamente isso. Suponho que possa ser aplicada a todas as atividades artísticas e não só à literatura, mas, seja como for, é algo que a narrativa cumpre completamente. Todos os romancistas que me interessam lutaram a vida toda contra a facilidade. A construção da própria obra é um esforço constante para escrever da fronteira do que não se sabe. É preciso fugir do que a gente domina, dos lugares-comuns pessoais, do conhecido: “A única influência da qual é preciso se defender é da própria”, dizia com toda razão Bioy Casares. E Rudyard Kipling aconselhava os escritores principiantes: “Assim que vir suas faculdades aumentando, tente alguma coisa que pareça impossível”. Não há nada mais penoso do que um romancista que copia a si mesmo”.

E o capítulo segue interessante, com uma classificação entre escritores porcos-espinhos e raposas, na qual os primeiros são aqueles que ruminam um mesmo assunto por toda a vida e os segundos aqueles mais itinerantes, caçando assuntos diversos ao longo da estrada. A classificação se isenta de valoração. Ambos os tipos de escritores podem fazer grandes livros. Finalizando o capítulo, Rosa Montero decide que talvez o melhor para ser escrito em seu necrológio seria: “Nunca se contentou com o que sabia”.

Lembrei de Sócrates e sua famosa máxima “Só sei que nada sei”, e dessa aproximação entre a escrita literária e a filosofia. Esse despir-se de tudo o que se sabe para que se possa saber mais ou diferente, saber em novas direções aquilo que julgamos já sabido. É um exercício constante que vale pra vida, manter o não-saber como ferramenta metodológica para que se possa saber alguma coisa, um paradoxo necessário, sobretudo em tempos como os nossos, em que o capitalismo anda cada vez mais fantasiado de respostas, receitas, bulas, chaves para o sucesso, segredos para a vida perfeita. Dez passos para escrever o livro que vai virar o bestseller. Ui! Chega a me dar nervoso.

Um trecho que me arrepiou todos os poros do corpo foi quando Rosa conta estar escrevendo um romance que resiste a ela mesma. Pois sim, Rosa, te entendo. Ando em luta com meu novo romance por este exato motivo. Ele resiste a mim. Como criança testando os limites dos pais, o romance me diz não não não não o tempo todo e ainda me mostra a língua encarnada. Joguei 73 páginas fora, estou nele há dois anos, ruminando uma imagem de um filho uma arma e um pai, testei diversas formas narrativas e ritmos de linguagem, encontrei um caminho para a voz de um dos narradores e toda a sua estrutura, encontrei um caminho para a segunda voz narrativa e toda a sua estrutura, a terceira parte do livro –ao menos ainda julgo ser a terceira, o processo é um campo movediço, tudo pode se alterar, e eu posso até ser engolida por ele – tem travado a batalha mais dura, tem sido o corpo mais resistente, porque é justamente nele que tenho sentido medo de saltar no abismo. Medo de ir a um lugar que me é desconhecido, um lugar que acabo julgando menos interessante só pra disfarçar o medo, um lugar para o qual possivelmente eu não estou preparada. E é justamente esse o lugar que o romance me exige: fugir da experimentação e assumir uma terceira pessoa mais corriqueira, que me é muy conhecida como leitora, mas que como escritora poucas vezes eu acesso.

Como eu sou muito fã das dificuldades adquiridas, e sempre trabalho minha jornada de vida no sentido de deixar esse mundo melhor do que encontrei – e isso se refere mais a mim do que ao mundo em si, o que no fim acaba dando no mesmo, se a gente muda o mundo muda um pouco talvez – quando sinto que me adaptei demais, que está tudo muito fácil e simples, que não há atrito ou contradição suficiente, prefiro mudar o rumo e testar novas possibilidades, rio que flui demais talvez não seja mais rio – e por favor, isso não tem nada a ver com aquela frase de instagram que prega a saída da zona de conforto.

Percebam que o corte foi um pouco brusco entre os dois parágrafos acima, porque acabei de admitir em público que fujo da terceira parte do romance justamente porque ela tem me pedido um exercício narrativo que julgo menos interessante, e isso sou eu e minha vaidade e toda a minha tolice e todos os meus temores fugindo do que o romance precisa. Às vezes, a experimentação é justamente seguir pelo caminho mais batido, sem temer o óbvio.

Fechando o divã, a pergunta que me fica é: até que ponto se pode travar uma batalha com o próprio processo? Qual medida se deve dosar ao não saber? Como sentir a hora de bater três vezes no tatame e aceitar a derrota e fazer dela a própria linguagem ou como vencer usando os mesmos truques de sempre, sem sofrer depois achando que a vitória foi menos válida?

Buenas, além do romance estou escrevendo dois livros de contos. Um deles gritou mais alto e pediu o palco. Nesse que gritou mais alto sigo por um caminho já trilhado, mas sempre buscando enxergar os detalhes perdidos na primeira caminhada. Chamo o livro de primo-irmão do meu primeiro livro de contos, porque de novo me interessa exercitar o protagonismo de personagens LBTS, mas o contexto é outro, o ritmo é outro, o exercício de linguagem é outro, porque a escritora é outra, o rio correu, as águas fluíram, por vezes transbordaram, por vezes secaram, noutras vezes se adaptaram à estreiteza das margens, são as mesmas águas, mas formam um novo rio. Então fica a questão, pode uma pessoa escritora repetir a si mesma, sem que esteja se iludindo?

Dando as mãos a outro filósofo, agora a Heráclito: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Assim, tudo é regido pela dialética, a tensão e o revezamento dos opostos. Portanto, o real é sempre fruto da mudança, ou seja, do combate entre os contrários”.

O combate entre os contrários é a própria vida, negá-lo talvez seja fechar os olhos para o movimento da existência.

Ui!

biriríbororó é isso, a gente nunca sabe onde vai dar. Me diz aí se alguma pira dessa filosofada de boteco fez sentido pra ti.

Até a próxima biriríbororózada!

Feliz 2025.

Estou lendo e adorando!!!

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