biriríbororó (4)

Eu tenho um eterno caso de incômodo com as redes sociais. E esse incômodo passa por diversas camadas. Mas, ossos do ofício, fico sempre atenta à linguagem. Tem uma prática do imperativo nas redes que me deixa muito incomodada.

Já reparou?

“Leiam isso”, “Vejam isso”, “Ouçam isso”.

Sempre me vem aquela clássica imagem estadunidense do Tio Sam, apontando na nossa cara aquele indicador impositivo. Tem uma coisa meio divina, esse dedo que tudo sabe e tudo vê nos mandando uma direção pra olhar, pra (re)agir. Se a gente for pensar que hoje em dia o mercado ocupa como nunca esse lugar divino e se faz essa entidade onipresente, onisciente e onipotente, tudo começa a fazer sentido. As redes sociais são comandadas por homens que são em grande parte donos do mercado, e se camuflam por detrás da metafísica de uma presença que está em todo lugar mas ninguém pode agarrar com as próprias mãos. E, se formos reparar bem, nós trabalhamos direitinho para eles. Nos presentificamos como dedos apontados nas caras uns dos outros, somos pequenos Tios Sam encobertos por cortinas de likes e compartilhamentos.

Isso tudo me lembra a narração onisciente, aquela que tudo vê e tudo tem a dizer sobre as personagens e a elas aponta as direções todas, feito marionetes. E claro que lembra, porque essa narração clássica vem muito daí, desse poder divino, dessa voz universal e neutra que pode falar sobre o mundo como se não tivesse implicações com nada e nem ninguém, nem consigo mesma. É algo sem corpo, sem lugar, sem massa. E já foi imperativo nas escolhas literárias do passado.

A linguagem tem uma importância sem tamanho na literatura e também na vida. Curiosamente vivemos um período no qual as produções literárias tendem a privilegiar os conteúdos em relação à linguagem. O mais importante é o que se conta e não como se conta. O que me intriga é que não há livro sem linguagem, como não há neutralidade política, e as escolhas que fazemos para contar uma história podem ser inconscientes, mas geram sempre consequências para o resultado de uma narrativa. Não há texto sem linguagem, assim como não há texto sem corpo – e aqui faço um paralelo proposital entre linguagem e corpo –, mas tem havido muito texto sem trabalho consciente de linguagem, muito texto sem trabalho consciente de corpo, o que sempre recebo com tristeza, pois é um desperdício imenso essa balança desmesurada pro conteúdo.

Na minha humilde opinião, linguagem faz o conteúdo, e todo conteúdo implica linguagem. Se a gente não se atenta à linguagem com tempo e zelo, muito provavelmente a gente cai nas armadilhas e reproduz linguagens que pululam por aí. Agimos como se pudesse haver separação entre linguagem e conteúdo, ou, pior ainda, como se houvesse jeito cristaliníssimo de ter acesso ao conteúdo de forma pura (cristalino e pura são palavras que abomino, a não ser que estejamos falando de águas paradisíacas, aí eu gosto).

Voltando ao meu caso de terror com as redes sociais – não que tenha deixado de falar dele –, outra prática de linguagem que muito me agonia é o sentido de urgência que se infiltra em qualquer texto ou imagem que nos ofertam nas redes. A própria palavra urgência (junto de necessária) tem sido usada indiscriminadamente, como um carimbo que nos urge as testas.

Todas essas urgências das redes acabam gerando uma urgência tão tão corrida que gera uma leitura corrida e uma reação corrida e uma linguagem corrida e uma experiência de existência corrida. Tudo corre tanto que as urgências viram espectros, feito aquelas fotos esportivas com técnica de longa exposição, que captam o movimento da velocidade passo a passo, gerando imagens fantasmas onde o esportista está e não está ao mesmo tempo.

Estamos e não estamos ao mesmo tempo e urgimos numa linguagem barulhenta e incessante. A pausa não tem sido implicada em nossas línguas que se ramificam pros nossos dedos e punhos regurgitantes de informações e opiniões.

E aí, pensando melhor aqui na técnica da longa exposição, eu sorrio e penso que só a imagem final, a dos espectros, funciona para essa minha analogia. O restante do processo joga muito contra, porque contém em si uma contradição preciosa. Para capturar o movimento da velocidade no mundo é preciso tornar mais lento o processo de abertura do obturador, para que passe maior quantidade de luz por ele. Há na técnica um processo de lentidão e abertura que se perdura, para que depois, na imagem capturada, a velocidade possa ser percebida. E aí me parece o contrário da linguagem das redes, onde a urgência foi associada propositalmente à velocidade, para gerar essa falsa sensação de não termos tempo pra pensar na linguagem que implicamos em nossos conteúdos.

Abrindo um parêntese: no teatro, em peças que temos muitas trocas de figurinos e pouco tempo para fazê-las, uma das primeiras lições que aprendemos é a de não termos pressa. Quanto mais pressa, mais tempo perdemos. Se agimos num senso de urgência que se alinha com a precisão e assertividade e não se confunde com a pressa, aí sim conseguimos fazer a troca sem enredar mãos e cotovelos e dedos e pés em golas e mangas e calças.

Pode ser que eu seja muita maluca, mas sigo achando que tudo passa pela linguagem e não à toa estamos na maior crise de pessoas leitoras dos últimos anos. Não é que não estejamos lendo. Estamos lendo, aliás, estamos lendo o tempo todo, mas estamos tendo acesso quase exclusivo a uma linguagem de imposição e de velocidade, na qual não há tempo a perder (o paradoxo é que estamos todos perdendo totalmente o nosso tempo e depositando o nosso tempo nos bolsos dos homens do mercado, que de deuses nada têm).

Prefiro acreditar que tudo passa pela linguagem. A linguagem das redes sociais nos implica mental e fisicamente nela e na lógica que a movimenta. 

Seguindo na minha loucura, fico aqui me perguntando, que tipo de conteúdos estaríamos produzindo se pensássemos mais na linguagem que evocamos? Que tipo de narrativas de vida estaríamos reverberando se nos atentássemos mais para a implicação da linguagem nelas?

Me interessam as perguntas, e talvez perguntar seja uma forma de tecer linguagens mais abertas e disponíveis às transformações.

Será?

O que sei é que as redes sociais nos querem, para que sejamos usados por elas e para que seus verdadeiros proprietários ganhem cada vez mais dinheiro e poder com isso. Não podemos fechar os olhos pro poder da linguagem e como ela é usada a favor dessa nossa implicação no “imperativo” I want you (eu quero você).

E nós, o que queremos?

Ainda queremos querer?

O biriríbororó de hoje é essa minha confusão sobre redes sociais e essa minha paixão por pensar e movimentar a linguagem, tudo de uma forma espontânea e nada técnica (sou fotógrafa amadora e usuária do Google), porque é esse o objetivo de biriríbororózar.

Sem nenhuma urgência, nem necessidade de pensar sobre, mas se quiser pode.

Beijos.

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