Tem tempo ando ruminando escrever sobre o gênero ensaio. Das últimas leituras são as que mais têm me entusiasmado. Andei esses meses meio detetive, investigando o motivo. Na ruminação do que escrever me chegou forte o gosto da palavra honestidade. Esse gosto de honestidade tem me seduzido nos ensaios. Uma honestidade na forma, no jeito de conduzir a escrita, sem salamaleques, sem imagens forçadas, sem uma intenção me conduzindo do início ao fim (mesmo que tenha), sem tantas frases para sublinhar. E por isso andei sublinhando várias, inclusive. Porque tudo que é bom é contraditório.
Eu ando com essa cisma. Como leitora e como escritora. Quanto menos frases eu sublinho num livro, tanto melhor. Isso se aplica sobretudo à ficção. Ando detestando quando escrevo frases sublinháveis. Ando virando a cara para os livros que me convocam sublinhar frases belíssimas ou que me fervilham o sangue. Cismei. Cisma é cisma.
É mais que cisma.
Voltemos à honestidade dos ensaios. Ao menos do último que li. Sumário de plantas oficiosas – um ensaio sobre a memória da flora, do Efrén Giraldo, publicado pela Fósforo. De uma beleza simples e livre, como comportam os ensaios, uma fluidez entre pensamentos, conceitos, intimidade, coletividade, memórias, momento presente, vida pessoal, imagens estranhas. E uma dedicação a investigar o caráter estético das plantas. Unindo suas paixões, seus hobbies e obsessões profissionais.
Esse livro me fez pensar em narrar com uma planta. Não tiro mais isso da cabeça. Talvez porque ele tenha afirmado que a narrativa não se presta a isso, não tão bem quanto o poema ou o ensaio. Narrar como planta não é o mesmo que escrever uma narrativa sobre uma planta, ou humanizando uma planta, mas deixar nascer uma narrativa que imana da planta. Giraldo nos diz que a planta é o “invólucro da forma, a linguagem artística que a natureza continua falando para nós”. Desde então nunca mais olhei meu pequenino quintal de apartamento do mesmo jeito. Eu, caçadora de formas para o que escrevo, agora olho as plantas como se elas me sussurrassem a cada segundo novas possibilidades de narrar o mundo. Verdadeiras professoras de estética.
Um abacateiro me ensinou algo sobre a pausa em movimento, um dia desses. Foram tantos meses para brotar, para algo do abacateiro vir à tona, que quase foi dado como morto, ainda bem que confiei no ponto verde que verdejava paciente naquilo que parecia terra arrasada. O danado agora está enorme e com folhinhas desabrochando. Espichou da noite para o dia aos nossos olhos de humanos, embora já viesse há meses num resiliente movimento, um movimento para si mesmo, uma forma secreta e escondida, silenciosa e acontecida como se em pausa. Eis que explodiu a linguagem do abacateiro. Belíssima. As plantas explodem! Giraldo afirma que as plantas são a vanguarda das formas e que a estética lhes pertence.
Desde então tenho lembrado de cada árvore da qual fui amiga. Aquelas das calçadas de Porto Alegre, com seus cachos de uvas fakes. Adorava brincar com suas bolinhas, seus contornos, as sombras frescas que proporcionavam, um encontro a cada passo, uma experiência de amizade coletiva meio flaneur. Lembro do salgueiro-chorão e do flamboyant, árvores de quintais em que morei e que se tornaram amigas e confidentes e parceiras de brincadeira, íntimas, sabiam todos os meus segredos de criança. A memória que tenho delas é como a memória que tenho das minhas pessoas. Chego na bergamoteira que plantei tirando a semente da boca depois de comer uma berga e que agora está aqui atrás de mim, ali no quintalzinho, enquanto escrevo. Minha árvore de apartamento.
Lembro das cismas de não sublinhar frase nos livros. É óbvio que bons livros sempre têm trechos sublinháveis, mas eu peguei para mim isso de que quanto menos as frases de um livro convocam para serem sublinhadas, melhor é a leitura. Um autor que amo é o Faulkner, e não tem quase nenhum sublinhado nos romances que eu já li dele. Conecto isso com a tal intenção de ser literário e escrever coisas bonitas ou citáveis. Acho que é por aí, uma parte do enrosco é por aí, mas é mais que isso, vai além, tem uma bifurcação onde as coisas se separam também. E é justo no outro caminho da bifurcação, aquele que ainda não consigo adentrar, que estão outras questões interessantes.
Mas voltemos ao caminho que por enquanto sei caminhar. Gosto daquelas narrativas, que como as plantas, são sem a intenção de ser. Não que a pessoa escritora não tenha que ter nenhuma intenção, óbvio que não, mas há uma intenção prévia e apontada para um lugar específico que alisa o texto, tirando as suas ranhuras, que busca no texto algo que é de fora dele. Lembro daquele trecho do João Cabral de Melo Neto
“…como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.”
O bom de escrever como se ensaia, e aqui me refiro ao conceito-prática de ensaio como se costuma utilizar no teatro, é que podemos não saber dizer, escrever como quem toma notas, faz colagens, composições de estados e imagens e recordações e reflexões e conceitos e poemas e desvios. O caminho vai se fazendo no próprio texto e muitas vezes precisamos escrevê-lo mil vezes até que encontremos a chave. A cada ensaio uma camada vai sendo adicionada à coisa. A cada camada uma nova coisa se parindo pelo interior dela mesma.
Tenho acompanhado os processos de “brotagem” (neologismo porque me lembrou brodagem) das plantas e na grande maioria se dão em um parir a partir de si para o mundo. Encurvadas e amassadas elas forçam passagem por caules e folhas mais velhas e despontam o novo. Geralmente nascem em coloração diversa, mais claras e muito lustrosas. Pouco a pouco vão perdendo a curvatura e o amassamento e o brilho. Escurecem. Viram plantas em riste. Se compõem.
Ensaiar é meio assim. Vai-se parindo a obra de dentro da própria obra e cada ato é uma descoberta e um novo ato. Não há uma intenção daquelas sublinháveis, quando há fica evidente e não funciona, o jogo tende a morrer. O gênero ensaio me parece ter uma irmandade com o ensaio-prático, porque reclama a composição, a costura, a camada sobre camada, a mistura de materiais de diversas origens. A cada momento parindo-se de si mesmo. “A lição mais importante que a árvore transmite – talvez a lição moral mais importante que já surgiu na terra, das rochas, dos animais – é a própria lição de imanência do que é, sem a menor preocupação com a opinião ou os gostos alheios, ou seja, com a crítica”. Neste trecho é como se o ato-nascimento das plantas fosse a base de toda a sua vida. Ser, apenas ser como quem nasce de si, sem existir além do ato. E aqui encontro mais uma pista sobre a minha cisma, sobre a narrativa que escapa das frases de efeito, da intenção de provocar algo externamente.
Lendo agora o Palmeiras Selvagens, do Faulkner, nenhuma frase me convoca o lápis, às vezes sublinho uma coisa ou outra pelo estudo e investigação da linguagem, mas não há esse chamado do fascínio do texto. Há, no entanto, uma força lenta e poderosa que se arrasta feito o vento e as águas que compõem o romance, se entranhando na gente, arrastando nossas certezas. É menos espetáculo e mais acontecimento. A narrativa é. Estou há meses lendo esse romance e não me perco, não me afasto das personagens, não esqueço as pulsações da história.
Tem algo aí, né?! Me parece que sim.
Giraldo me provoca quando diz: “A narrativa parece ser capaz de às vezes contar certas histórias sobre plantas, mas é privilégio do poema e do ensaio pensar e ser como planta”. Quero acreditar que a narrativa também pode ser como planta. Imanar. E para isso talvez a pessoa escritora precise se trabalhar e muito, para deixar a narrativa livre para ser, no sentido de parir-se a si, encurvada e amassada sobre si mesma, sair aos poucos, até ficar em riste. Uma tarefa e tanto. Talvez possível de ser alcançada. O mais difícil, quem sabe, seja mesmo o tempo e o silêncio. Meses e meses como se nada acontecesse enquanto tudo acontece num mistério profundo que não dominamos. Ser o próprio tempo. Imanar da narrativa o silêncio e o tempo das plantas é o maior mistério a ser perseguido. Não só em uma narrativa, mas na vida.
E aqui não é o fim desse texto. Talvez nem seu começo. Apenas uma pista. Parece que nada está acontecendo, mas pode ser apenas o tempo de enraizar.
Voltarei nesses tópicos mais adiante.
Aqui as capas dos livros citados:

